Por Jefferson Puff, para a BBC Brasil
"Ficou tudo muito escuro de repente. A cidade inteira virou um inferno. Eu tinha 21 anos, era um soldado do Exército do Japão. É importante lembrar para que isso nunca mais aconteça. Hoje em dia, com 92 anos, sei que vou morrer falando deste dia. Nunca vou esquecer."
É assim que Takashi Morita, presidente da Associação Hibakusha Brasil Pela Paz (hibakusha significa "sobreviventes de bomba atômica", em japonês), descreve a queda da bomba de Hiroshima, em 1945, e explica o motivo de sua batalha da vez.
Ele quer convencer o COI (Comitê Olímpico Internacional) a incluir, em memória das vítimas da bomba, um minuto de silêncio na cerimônia de abertura da Olimpíada do Rio - o evento está marcado para o mesmo dia e horário em que a tragédia completa 71 anos (noite de 5 de agosto no Brasil e manhã do dia seguinte no Japão).
"A coisa mais importante do mundo é a paz. Há pessoas de todo o mundo fazendo parte dessa campanha, e eu espero que dê certo", diz o relojoeiro, dono de uma mercearia no bairro da Praça da Árvore, em São Paulo, cidade onde mora desde 1956.
O movimento, iniciado no Brasil há cerca de dois meses, ganhou o apoio de outras organizações e levou o prefeito de Hiroshima, Matsui Kazumi, a enviar o pedido em uma carta endereçada ao presidente do COI, Thomas Bach, e ao prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB).
Mas a resposta do órgão, baseada em dois argumentos, foi negativa.
O primeiro é que uma área da Vila dos Atletas será destinada a orações e homenagens a falecidos, e o segundo, de que a cerimônia de encerramento dos Jogos incluirá um momento de lembrança a todas as pessoas que já morreram.
A BBC Brasil teve acesso às duas cartas. O documento assinado por Matsui Kazumi diz que o minuto de silêncio também serviria para lembrar das mortes nos ataques extremistas em Beirute, Bruxelas, Paris e Istambul.
"Nós acreditamos que vocês têm em suas mãos uma grande oportunidade para reavivar a memória dos Jogos Olímpicos como um evento voltado à paz", diz o documento.
Já o documento assinado por Christophe De Kepper, diretor-geral do COI, diz que "em nosso mundo frágil, os valores olímpicos da solidariedade e da paz são mais importantes do que nunca" e que "os Jogos Olímpicos sempre são um símbolo de paz e um importante lembrete à comunidade internacional sobre nossa humanidade compartilhada".
Analistas costumam sugerir que o COI não faça concessões de minutos de silêncio nas aberturas olímpicas para não se envolver em questões políticas - embora neste ano Barack Obama tenha sido o primeiro líder americano desde 1945 a visitar a cidade, os Estados Unidos nunca pediram desculpas formais ao Japão pela bomba atômica.
A carta assinada pelo diretor-geral do COI diz ainda que "como o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, compartilha destes objetivos, eu fiz contato próximo com ele ao preparar esta carta, para garantir que ele estivesse ciente da resposta".
Procurado pela BBC Brasil, Paes não quis comentar o assunto.
O Comitê Rio 2016 reiterou que o "local de orações e homenagem aos mortos" na Vila dos Atletas e o "momento de reflexão" no encerramento dos Jogos serão uma forma de "todos ao redor do mundo lembrem seus entes queridos que já morreram".
A sede do COI em Lausanne, na Suíça, que disse não ter "nada mais a acrescentar" à carta enviada ao prefeito de Hiroshima.
Na última segunda, uma nova carta foi enviada a Bach. No documento, Takashi Morita e Chico Whitaker reiteram o pedido de um minuto de silêncio na abertura da Olimpíada.
Para eles, visita de Obama à Hiroshima em maio indicaria que o minuto de silêncio não representaria um impasse diplomático entre o COI e os Estados Unidos.
"Este gesto não poderá ser interpretado como hostil aos Estados Unidos, como foi ponderado no Comitê Olímpico Internacional. O próprio presidente Obama foi a Hiroshima para homenagear essa cidade mártir", diz o texto.
A ideia do minuto de silêncio surgiu durante uma conferência sobre desarmamento nuclear civil e militar em março, no Japão - Chico Whitaker, membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, da CNBB, e da Coalizão por um Brasil Livre de Usinas Nucleares trouxe a ideia ao Brasil e conversou com Takashi Morita.
Pol Dhuyvetter, representante na América Latina e Caribe da organização "Mayors for Peace" ("Prefeitos pela Paz), que reúne 7.042 cidades de todo o mundo, também abraçou a causa e a levou ao presidente da entidade, o prefeito de Hiroshima, que se entusiasmou com a ideia.
"Para nós a resposta do COI foi um choque. Não custa nada fazer esse minuto de silêncio. Não seria somente por Hiroshima e Nagasaki, mas por Bruxelas, Paris, e por todas as situações de violência e insegurança, como aqui mesmo no Rio. O COI perdeu contato com sua missão", diz Dhuyvetter.
Para Whitaker, o potencial temor de impasse diplomático não se sustenta.
"Se perguntassem ao Obama, que acabou de ir à Hiroshima, certamente ele diria para irem adiante com a ideia do minuto de silêncio. Bilhões de pessoas ao redor do mundo teriam essa lembrança pela paz e se eles não fizerem, a sociedade vai fazer, mas seria ótimo para a imagem dos Jogos Olímpicos esse tributo à paz mundial", diz.
Já Yasuko Saito, de 68 anos, filha que ajuda Takashi Morita na Associação Hibakusha paulistana há 32 anos, diz que a homenagem seria importante para preservar a memória.
"Muitos filhos de sobreviventes não sabem quase nada sobre seus pais e o Japão na época da bomba. Muitos optaram por sofrer em silêncio e não contaram quase nada. Meu pai e minha mãe são sobreviventes, os dois, e falavam sobre isso em casa. Eu espero que o COI mude de ideia, estamos espalhando essa campanha mundo afora", diz.
A ONG norte-americana Change lançou uma petição online que já conta com quase 11 mil assinaturas, e a Nuclear Age Peace Foundation também lançou uma campanha. Segundo Saito, há muitas associações de sobreviventes nos EUA e na Ásia aderindo ao pedido.
Outros pedidos de um minuto de silêncio já foram feitos ao COI no passado.
Entre eles está um solicitado há muitos anos - e nunca atendido - pelos familiares dos 11 atletas israelenses e do policial alemão mortos em um ataque do grupo terrorista Setembro Negro durante a Olimpíada de Munique, em 1972.
Em março, uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo afirmou que durante os Jogos do Rio, mais especificamente em 14 de agosto, haverá um tributo na prefeitura, organizado pelo Comitê Olímpico de Israel e o Consulado Geral de Israel no Brasil.
Questionada pela BBC Brasil, a Prefeitura do Rio disse que não tem relação com o evento, e que suas instalações apenas serão usadas pelas autoridades israelenses como o local da celebração.
No mês passado, Thomas Bach falou dos mortos de 1972 ao confirmar a criação de um local de orações e memória dentro da Vila dos Atletas.
"É claro que os 11 atletas e o policial alemão que morreram no pior momento da história olímpica serão lembrados. Outros também serão lembrados. (Mas) Não haverá gravações de nomes".
Nascido em Hiroshima, Takashi Morita era soldado da base de Hamamatsu quando decidiu prestar um concurso para se tornar policial militar em Tóquio. Em julho de 1945, optou por servir em sua cidade natal.
Um mês depois, ele escoltava um grupo de soldados a um abrigo aéreo em construção quando viu o dia ensolarado dar lugar à escuridão seguida por uma forte explosão.
A um quilômetro do epicentro da bomba, ele só não teve o rosto completamente queimado porque estava de costas para o local, vestido com uma farda grossa e de chapéu.
Minutos depois, se voluntariou para entrar na cidade e descobrir o que tinha acontecido.
"Fui um dos primeiros a receber a confirmação do Exército de tratava-se de uma bomba atômica. Primeiro achamos que tinha sido um depósito de pólvora que tinha explodido", conta.
Onze anos depois, já casado e com dois filhos, Morita decidiu se estabelecer no Brasil - a viagem do Japão ao porto de Santos durou 53 dias.
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