Por , 17/07/2014 11:04

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A exploração da terra “é o nosso pecado”, diz o pontífice

Tara Isabella Burton* - The Atlantic

No dia 5 de julho, o Papa Francisco fez algo discretamente revolucionário. Em uma palestra na universidade italiana de Molise, Francisco caracterizou as preocupações com o meio ambiente como “um dos maiores desafios da nossa época”, um desafio que é teológico, bem como político, por natureza. “Vejo a América (…) tantas florestas, todas cortadas, que se tornaram terra de cultivo (…) que não podem mais dar vida”, refletiu ele, citando as florestas da América do Sul, em particular. “Este é o nosso pecado, explorar a Terra. (…) Esse é um dos maiores desafios da nossa época: converter-nos a um desenvolvimento que saiba respeitar a criação”. E o pontífice não termina aí; ele está planejando lançar uma encíclica ou carta papal, sobre a relação do homem com o meio ambiente.

É fácil ser simplista sobre as observações de Francisco - poucas pessoas enxergam o corte das florestas tropicais da Amazônia como um desenvolvimento encorajador. E um papa que defende a proteção ambiental não é algo inteiramente novo; afinal, o The Guardian apelidou Bento XVI de o “primeiro pontífice verde” por seu trabalho nessa área. Mas, ao caracterizar a destruição do meio ambiente não apenas como um pecado, mas sim como o nosso pecado, o maior pecado dos tempos modernos, o papa está fazendo mais do que condenar a inação pública sobre as questões ambientais.

Por delimitar uma posição ferozmente pró-ambientalista, embora limitando o seu discurso sobre questões polêmicas como a homossexualidade, Francisco está usando seu púlpito para moldar ativamente o discurso público sobre a natureza da criação (de fato, as questões ambientais fizeram parte de sua primeira missa papal). Ao fazê-lo, ele está implicitamente endossando uma visão surpreendentemente positiva da relação do indivíduo com o mundo criado e, com ele, uma visão profundamente otimista do que significa ser humano – e encarnado – de maneira geral, abrindo a porta para uma mudança radical de ênfase, embora não de doutrina, quando se trata da visão da Igreja Católica da humanidade.

A visão cristã da relação do indivíduo com a natureza – a “criação”, assim chamada no contexto teológico – tem tradicionalmente girado em torno de interpretações da exortação em Gênesis 1, 28: “E Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sejam fecundos, multipliquem-se, encham e submetam a terra; dominem os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra’”.

Muitos citam a ideia de domínio para justificar uma visão antropocêntrica do mundo, em que a natureza existe apenas para fornecer ao homem a sua generosidade – uma posição que, muitas vezes, é mais prevalecente nos círculos evangélicos, especialmente nos Estados Unidos.

Alguns tipos de legislação, como a Louisiana Science Education Act [Lei sobre o Ensino de Ciências] do estado de Louisiana, nos Estados Unidos, que visa a adoção de um currículo “equilibrado” (leia-se: negação das mudanças climáticas) sobre a mudança ambiental nas escolas, tem recebido o apoio de organizações como o grupo criacionista Discovery Institute e o grupo cristão de defesa da liberdade religiosa, Alliance Defending Freedom. A Cornwall Alliance, cuja declaração foi assinada por luminares da direita religiosa, lançou uma série de 12 vídeos em 2010, intitulada “Resisting the Green Dragon” [Resistindo ao Dragão Verde], sobre os perigos do ambientalismo.

Essa perspectiva, no entanto, não está limitada aos protestantes. Considere-se o político católico Rick Santorum, que, em uma cúpula sobre energia, em 2012, no Colorado, rejeitou a ameaça das mudanças climáticas. “Nós fomos colocados na Terra como criaturas de Deus para ter domínio sobre a Terra, para usá-la com sabedoria e custodiá-la com sabedoria, mas para o nosso benefício, não para o benefício da Terra”, disse ele.

Tais posturas hostis sobre o ambientalismo estão enraizadas em uma questão muito mais profunda: em que medida deve o “eu” ser entendido como existente contra ou a favor da natureza? Em muitas tradições cristãs e, particularmente, entre a direita cristã, o indivíduo e o mundo criado estão em contradição – um produto da expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden e da declaração de Deus em Gênesis 3,17, “maldita seja a terra por sua causa. Enquanto você viver, você dela se alimentará com fadiga”.

O ato do pecado original, em outras palavras, estabelece uma relação inerentemente combativa entre o homem e a natureza; qualquer conflito é parte do “plano de Deus”. Como afirmou Elijah Dann, professor de religião e filosofia na Universidade Simon Fraser, no Canadá, em um artigo no Huffington Post sobre a mentalidade evangélica, “de alguma forma, pensar que podemos corrigir as instabilidades climáticas é [visto como] uma negação do juízo de Deus contra a desobediência humana”.

Além disso, qualquer tentativa de “consertar” o mundo natural é um esforço indesejável de mudar a ênfase da alma para o corpo. Como Dann escreve, “quando os cientistas nos anos 1970 estavam começando a se preocupar com o meio ambiente, eles eram vistos como se estivessem se engajando em uma forma secular de salvação – para salvar o planeta – e, como tal, eram uma afronta a Deus. A ênfase deve sim estar na salvação das almas”. O secular e o sagrado estão, nessa visão de mundo, totalmente separados: concentrar em salvar o mundo físico é prejudicar a alma imortal.

Ainda assim, esse ponto de vista, embora muitas vezes expressado vocalmente no discurso político e teológico norte-americano, está longe de ser o único. Outra vertente do pensamento cristão interpreta a mesma referência ao “domínio” em Gênesis como uma exortação à “proteção”. O mandamento representa tanto uma responsabilidade quanto um privilégio. Essa perspectiva tem produzido movimentos silenciosos de “cristianismo verde” nas últimas décadas, a partir da proliferação da ideia de “cuidado com a criação” entre os evangélicos, desde o Environment Justice Program iniciado pela Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos em 1993, aos comentários do Papa Francisco em sua missa inaugural de “sermos ‘protetores’ da criação, protetores do plano de Deus inscrito na natureza, protetores uns dos outros e do meio ambiente”.

“Cada árvore, cada lagoa, cada membro de cada espécie é único e especial para Deus”. A mentalidade de proteção promovida por Francisco surge de uma teologia mais ampla, que vê o mundo criado como inerentemente sagrado por ter sido feito por Deus.

A “queda” do mundo pode ter danificado a relação homem-natureza, mas o ideal pelo qual devemos trabalhar é o ideal da reconciliação. Tais interpretações também abraçam a ideia cristã da encarnação salvífica – que Cristo representa não apenas a Deus, em forma humana, mas, na verdade, Deus tornando-se homem. Se Deus pode entrar no mundo físico, segue a lógica, então o mundo físico é ainda mais sagrado (ou mesmo redimido do pecado original) por tal presença. A tradição católica franciscana – da qual o Papa Francisco busca não só inspiração, mas também de onde escolheu o seu nome – está enraizada nessa perspectiva.

Como escreveu Patrick Carolan, presidente da Rede de Ação Franciscana, no U.S. Catholic, “como parte da tradição franciscana, enfatizamos a ‘hecceidade’, a especialidade única de cada vida particular e de cada coisa inanimada, que é amada individual e particularmente por Deus. Cada árvore, cada lagoa, cada membro de cada espécie é única e especial para Deus”.

O Papa Francisco defende o seu apelo por uma ação ambiental, argumentando que “a criação não é uma propriedade que podemos governar à vontade; ou, menos ainda, é propriedade de apenas alguns: a criação é um dom, é um dom maravilhoso que Deus nos deu, para que nós cuidemos dela e a utilizemos para o benefício de todos, sempre com grande respeito e gratidão”.

O movimento cristão ecofeminista, que se desenvolveu a partir de perspectivas feministas e “mulheristas” no campo da teologia, também floresceu tanto no pensamento protestante como no pensamento católico. Algumas ecofeministas como a quaker Grace Jantzen acreditam que a demanda por uma custódia positiva emana da própria estrutura do mundo.

Em seu livro, “God’s World, God’s Body” [Mundo de Deus, Corpo de Deus], Jantzen argumenta que a relação de Deus com o mundo é análoga à relação entre o corpo e a alma. Com base na doutrina cristã generalizada da imago dei - que o homem é criado à “imagem e semelhança” de Deus (como em Gênesis 1,16) - Jantzen sustenta que o nosso estado encarnado estabelece a criação como o “corpo” de Deus. Ao contrário das escolas de pensamento do “domínio”, as escolas de custódia assumem que o mundo criado é inerentemente bom – que há uma concórdia inerente, ao invés de conflito, entre o físico e o espiritual.

Em suas observações recentes, o Papa Francisco não foi tão longe quanto Jantzen. Mas o seu foco sobre a necessidade de uma gestão do ambiente coloca-o dentro dessa tradição pró-ambientalista e dentro de uma teologia mais ampla que está disposta a celebrar, em vez de rejeitar, a matéria como uma dádiva de Deus.

O que é radical é a vontade de Francisco de apresentar o ambientalismo não apenas como um desafio, mas como um dos “maiores” desafios do nosso tempo. Ao sublinhar a importância do ambientalismo em sua teologia geral, Francisco está fazendo mais do que simplesmente defender um conjunto de princípios. Ele também está, publicamente, enfatizando – com o alcance vertiginoso concedido a um homem da sua posição – um entendimento da natureza, em contraste com a dicotomia combativa tão prevalecente no costumeiro discurso político-religioso, intrinsecamente positivo em seu tratamento do mundo físico. É uma visão que é, radical e profundamente, pró-vida.

*Tradução Claudia Sbardelotto.

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