A Assembleia Geral da CNBB, realizada em Aparecida de 10 a 19 de abril de 2013, após ouvir e discutir uma comunicação sobre a Questão Nuclear no Brasil e no Mundo, decidiu por unanimidade, pelo voto, abrir e aprofundar dentro da Igreja a discussão sobre o tema da produção de energia elétrica por Usinas Nucleares no Brasil, numa perspectiva pastoral de defesa da vida, e estimular a ampliação desse debate em toda a sociedade, numa perspectiva de transparência e informação dos cidadãos. 

Chamo a atenção para o fato dessa decisão ter sido tomada pelo voto, sem nenhum abstenção nem voto contrario. Ou seja, teremos todo o apoio da Igreja Católica, espalhada por todo o Brasil, no que fizermos visando ampliar o nível de informação da sociedade sobre as ameaças da opção nuclear.

Abraços do Chico Whitaker

P.S.: Abaixo texto da exposição apresentada aos bispos.

A Questão Nuclear no Brasil e no Mundo

(Comunicação de Chico Whitaker, da Comissão Brasileira Justiça e Paz, à Assembleia Geral da CNBB de 2013)

Senhores Bispos,

Devo falar-lhes hoje, da questão da energia nuclear no Brasil e no mundo. Tem sentido um tema tão técnico numa Assembleia de Bispos? Devo dizer que sim, sem sombra de dúvidas, porque começa a se ampliar a polêmica em nosso país em torno do programa nuclear brasileiro. Esta polêmica ficou muito tempo limitada à questão efetivamente técnica das vantagens e desvantagens da opção nuclear e suas alternativas. Mas depois do desastre ocorrido na usina nuclear de Fukushima, no Japão, em março de 2011, ela passou a ter tudo a ver com a defesa da vida. A CNBB não pode portanto ficar alheia a esse debate.

É a defesa da vida que justifica portanto minha exposição a esta Assembleia. E pretendo lhes mostrar – espero que o consiga - que enquanto no Primeiro Mundo a sociedade está se mobilizando cada vez mais para interromper o ciclo de morte iniciado quando se descobriu a possibilidade de se manipular a enorme energia contida nos átomos, no Brasil ainda se tem pouquíssima consciência da extrema gravidade da questão da energia nuclear e da urgência em enfrentar os problemas que ela nos coloca, numa perspectiva de defesa da vida.

A situação no Brasil

O programa nuclear brasileiro foi lançado, no tempo dos militares, com o objetivo de construir uma bomba atômica. Era o absurdo sonho do chamado Brasil Grande entrar no clube, então restrito, dos que dispunham dessa terrível arma. Os militares reduziram hoje seu interesse à construção de submarinos nucleares, supostamente com objetivos de segurança.

Mas o que atualmente mais causa polêmica é o uso da energia nuclear para produzir eletricidade. Para esse fim foram construídas duas usinas, em Angra dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro, e uma terceira está em construção nesse mesmo local. E o governo diz que pretende construir várias outras no Nordeste.

A polêmica tende a se amplificar, com uma participação crescente de físicos, engenheiros nucleares e especialistas em energia independentes do lobby nuclear, e com a entrada na discussão de organizações da sociedade civil e representantes políticos. Nela se colocam fundamentalmente duas questões que permanecem sem resposta: a da segurança e a do destino a ser dado ao lixo atômico produzido pelas usinas.


A situação no resto do mundo

É fundamental, por outro lado, considerar o que se passa no resto do mundo em torno dessas questões. Ora, infelizmente, e tragicamente para nosso povo, as decisões que estão sendo tomadas pelo governo brasileiro vão na total contra-corrente do que ocorre nos países do Primeiro Mundo, que agora enfrentam as consequências da opção que fizeram há cinquenta anos atrás.

Estes países também foram por assim dizer novamente acordados pelo acidente de Fukushima, quando já iam esquecendo aquele ocorrido vinte e cinco anos antes em Chernobyl, na então União Soviética.

Na Europa o jornal inglês The Economist fala com todas as letras do “fim do sonho do nuclear” e na França, um país em que 77% da energia elétrica vem de usinas nucleares e onde se multiplicam os movimentos sociais para “sair do nuclear”, um numero recentíssimo da revista Silence4 tem como matéria de capa, diretamente, a “Agonia do nuclear”.

De fato, já se fixam prazos para o fechamento das usinas em vários países do Primeiro Mundo. O caso mais conhecido é o da Alemanha5, que em 31 de dezembro de 2022 deverá começar o desmonte6 da sua ultima usina em operação. E sua empresa mais importante no setor, a Siemens, já desativou seu departamento de energia nuclear. Um referendum na Italia fechou totalmente as portas ao nuclear. No Japão, fixou-se a data de 2040 para completar a “saída do nuclear”. Das 53 usinas de que dispõe, somente duas foram reativadas depois do desastre de Fukushima. E um forte movimento de opinião pública exige que nenhuma outra seja posta em funcionamento. Nos Estados Unidos decidiu-se em 1979, depois do acidente de Three Miles Island, não autorizar a construção de nenhuma usina nova, e só agora foram retomadas vagarosamente algumas construções, e não se terminou ainda a construção de uma usina começada em 1972, autorizada antes portanto do acidente.

Enquanto isso nossos tecnocratas, ou nucleocratas, anunciam com arrogância que nosso programa de construção de usinas continuará. Quando deveriam exatamente aproveitar o fato de mal termos começado esse programa – hoje somente de 2 a 3% de nossa energia elétrica vem de usinas nucleares – para definir um objetivo que vai se tornando incontornável: fazer meia volta e retirar totalmente de nossa matriz energética essa desastrosa opção, para a qual não faltam alternativas.


A cultura do segredo

Mas para que essa meia-volta possa ser dada é fundamental superar o segredo com que se cercam as questões relativas ao nuclear. Este segredo é uma herança da cultura militar da guerra. Isto leva nossos responsáveis governamentais do setor da energia a manter a população completamente desinformada dos riscos que corre e do que está sendo preparado para seu futuro9 – dizendo que não se pode criar pânico...

Até a mentira é usada, como ocorre igualmente nos países do Primeiro Mundo. Só que neles ela é denunciada cada vez mais por muitos ex-responsáveis governamentais que decidiram dizer o que sabem10. A credibilidade das autoridades do setor nuclear está nesses países cada vez mais baixa. Tornou-se quase motivo de chacota na França a informação dada pelo governo de que não haveria com que se preocupar quando nuvens radioativas provenientes de Chernobyl cobriam toda a Europa: elas estavam sendo barradas nas fronteiras do país... Aumenta assim cada vez mais a pressão da sociedade, inclusive com o apoio dos meios de comunicação de massa, para que não se escondam os riscos que as populações já estão correndo.

Na verdade, aqui no Brasil, seria talvez necessário somente empurrar essa opção ladeira abaixo.

A vergonhosa negociação para financiar Angra III

Para se ter uma ideia da irresponsabilidade de nossos nucleocratas, relato um episodio inacreditável que ainda está em curso. Para financiar o término da terceira usina de Angra, o governo brasileiro buscou recursos junto a bancos europeus. Nessa negociação entrava também uma garantia dada pela companhia de seguros alemã Hermes. O acidente ocorrido em Fukushima levou a uma revisão geral das normas a respeitar para evitar acidentes. Nada mais natural portanto que esses bancos e a companhia de seguros solicitassem informações do governo brasileiro sobre o respeito a essas novas normas.

Passou-se no entanto mais de um ano sem que nosso governo conseguisse enviar essas informações. Até porque, por exemplo, uma das informações pedidas era o plano de evacuação dos moradores próximos à Usina, em caso de acidente. As normas de segurança atuais exigem que essa evacuação contemple um grande raio em torno da usina (o raio da evacuação em Fukushima foi de 30 quilômetros). Mas o plano de Angra, em si mesmo bastante precário pela absoluta insuficiência das rotas de fuga, considera somente um raio de 5 quilômetros. A quem pergunta porque se diz, cinicamente, que a evacuação da cidade de Angra, com seus mais de 170.000 moradores a 15 quilômetros da usina, seria muito complicada...

O que fizeram nossos nucleocratas – ou nucleopatas, como os chamam seu críticos mais ferinos? Pasmem, senhores Bispos. Simplesmente abandonaram a negociação de financiamento de bancos europeus dizendo que não há problema: a Caixa Econômica Federal – com todos os recursos de que dispõe para seu famoso programa Minha Casa Minha Vida – repassará à Eletronuclear os 30 bilhões faltantes... Pretendem tranquilamente transformar a Caixa em cúmplice de um verdadeiro crime de responsabilidade, não fiscal mas diretamente social . Obviamente este autêntico escândalo já está sendo denunciado11. Mas o poder do lobby nuclear é muito grande no Brasil...

O “mercado” dos países pobres

A pressão para que nosso programa nuclear continue não vem no entanto somente de nossos tecnocratas, associados aos militares. Com a tendência crescente dos países ricos “saírem do nuclear”, as grandes empresas desse setor estão conhecendo cada vez maiores dificuldades econômicas. Passam então a procurar vender seus produtos a países do Terceiro Mundo. Quase como quando os “conquistadores”, no tempo das descobertas, maravilhavam os autóctones com enfeites brilhantes, pólvora ou cavalos, elas se apoiam na desinformação decorrente da cultura do segredo, na inconsciência generalizada do que significa de fato a opção nuclear e - por que não? - na corrupção... E conseguem que os governos assim abordados se lancem nessa aventura infeliz.

O Brasil vive hoje um clima de crescimento econômico que exacerba a ganância. E como se ganha muito dinheiro com o nuclear, as coisas se passam aqui como se nada estivesse acontecendo lá fora no setor nuclear13. Uma intensa propaganda enganosa é feita pelas nossas empresas publicas e privadas envolvidas nesse tenebroso negocio, criando e difundindo, para justificar suas decisões, mitos que encobrem a realidade.

Porque essa reviravolta, nos paises ricos?

Temos no entanto que nos perguntar: porque tamanha reviravolta nos países ricos, depois inclusive da aplicação de bilhões ou mesmo trilhões de dólares na energia nuclear? Eu diria que ela se deve ao fato de dirigentes políticos, cientistas e mesmo militares terem tido, nos últimos cinquenta anos, acessos de bom senso. A duras penas, como passo a explicar.

As mudanças que se constatam, em torno da questão específica das usinas nucleares, se situam de fato dentro de um vasto processo, na aventura da descoberta da radioatividade e da manipulação do átomo. Parece ser a resposta a um instinto de sobrevivência da espécie humana: determinados efeitos das manipulações do átomo podem levar à própria extinção da possibilidade de vida na Terra.

Esse processo compreende quatro mobilizações da Humanidade, numa autêntica defesa da vida e dos seres humanos, que se superpõem: o controle efetivo das fontes radioativas, a luta pela proibição de testes nucleares, a luta pela não proliferação de armas nucleares e a destruição das existentes e, por ultimo, depois do desastre de Fukushima, a luta pelo abandono da opção nuclear para produzir energia elétrica.

Chamo essas mobilizações de lutas porque se trata verdadeiramente disso: é enorme a resistência de governos comprometidos com essas autênticas loucuras, de empresas movidas unicamente pela sede de lucro, de militares que só raciocinam em termos de enfrentamentos violentos armados.

Eu pediria licença para trazer a este ponto de meu raciocínio uma imagem tosca: durante a primeira metade do século XX a Humanidade foi abrindo pouco a pouco a jaula em que se encontrava o Demônio da radioatividade e da energia do átomo. Na segunda metade ela está tentando, duramente, enjaulá-lo de novo. O triste no Brasil é que nossas autoridades estão preferindo que ele fique à solta pelo território nacional.

Da radioatividade natural à radioatividade artificial

No início desse século o mundo começava a se maravilhar com as descobertas do seleto circulo de cientistas da física e da química na Europa.

Em 1895 o alemão Roentgen descobriu os raios X15, pelo que recebeu o Premio Nobel de Física de 1901. Pouco depois o casal Marie e Pierre Curie descobriram radiações mais potentes, a que deram o nome de radioatividade, com grandes aplicações na terapia de doenças como câncer. O Premio Nobel de Física de 1903 foi então para eles, juntamente com o físico Becquerel, pelos seus trabalhos em torno da radioatividade.

Em 1934 foi no entanto a vez de Irène Curie, filha de Marie e Pierre, dar o passo mais perigoso, ao descobrir com seu marido, Frederic Joliot, a possibilidade de transformar átomos não radioativos em átomos radioativos. O casal receberia por essa descoberta, em 1935, mais um Premio Nobel para a família. Os cientistas realizavam assim o sonho dos alquimistas, que procuravam transformar a matéria. Um passo que levaria os cientistas a se transformarem em aprendizes de feiticeiro.

Na verdade os seres humanos convivem desde que existem com a radioatividade natural, emitida pelo urânio que se encontra na crosta terrestre e por raios cósmicos – que nos atingem mais quando voamos de avião. Mas a radioatividade artificial abriu as portas para grandes riscos.

As radiações, naturais ou artificiais, são ionizantes, isto é, capazes de introduzir alterações nos átomos de nosso corpo e quebrar moléculas. Mas elas não são perceptíveis por nenhum de nossos cinco sentidos: a vista, o olfato, a audição, o gosto e o tato não nos permitem perceber que elas estão agindo. Mas elas atingem as células e são capazes de destruí-las. E seus efeitos podem não ser imediatos, podendo aparecer dezenas de anos depois de termos sido irradiados ou contaminados com partículas radioativas. Ora, muitos dos elementos radioativos artificiais que passaram a ser fabricados podem ter uma longuíssima vida, de até milhões de anos20, até perder sua radioatividade. Ou seja, uma vez fabricados podem prejudicar muitíssimas gerações de seres humanos.

Mas no inicio do século XX pouco se sabia que as importantes descobertas feitas para o diagnóstico e cura de doenças podiam também ter efeitos danosos nos corpos humanos.

Foi por isso que um século atrás o físico francês Pierre Curie fez um primeiro alerta, em seu discurso ao receber o Premio Nobel em 1903: “(...) os raios de radio e sua emanação produzem efeitos interessantes (...) que foram usados no tratamento de algumas doenças (lúpus, câncer, doenças nervosas). Em certos casos, sua ação pode tornar-se perigosa. (...) Pode-se pensar que o rádio em mãos criminosas poderá tornar-se muito perigoso, e aqui pode ser levantada a questão se a humanidade se beneficia em conhecer os segredos da Natureza, se ela está pronta para lucrar com isso ou se esse conhecimento não lhe trará prejuízos”.

O controle das fontes radioativas

Tornou-se assim fundamental, com a extrema difusão das tecnologias e dos aparelhos que usam a radioatividade artificial na medicina, na industria e na agricultura23, controlar rígida e estritamente o uso e o descarte das fontes radioativas usadas nesses aparelhos. Na verdade esse é um dos grandes problemas que se colocam hoje no mundo todo, porque esse controle nem sempre é feito. Até porque as autoridades sempre temem criar pânico...

No Brasil já experimentamos tragicamente os resultados dessa falta de controle: em Goiânia, em 1987, com meras 19 gramas de césio-137, altamente radioativo - um desses elementos hoje produzidos artificialmente e de forma ininterrupta nos reatores das usinas nucleares. Elas provinham de um aparelho de radioterapia irresponsavelmente abandonado, e mataram quase imediatamente ou num curto espaço de tempo dezenas de pessoas, obrigaram a amputações e ainda estão provocando cânceres e nascimentos com deformações.

Não quero deixá-los intranquilos aconselhando-lhes a leitura de um relatório feito em 2007 em nossa Câmara dos Deputados, por um Grupo de Trabalho sobre Radioproteção e Segurança Nuclear no Brasil29. Nele veremos, por exemplo, que a Conselho nacional de Energia Atômica reconhece que encontram-se pelo Brasil afora 42.000 para-raios com suas fontes radioativas. Eles eram usados em nosso país a partir de 1970 e foram proibidos em 1989, mais ainda não foram todos encontrados pelos organismos responsáveis pela fiscalização... O elemento radioativo usado nos para-raios, que pode contaminar pelo contato, demora 400 anos para perder a metade de sua radioatividade...

A bomba atômica

Os filósofos gregos30 tinham dito, numa reflexão teórica, que o átomo era a menor partícula de que se compunha a matéria. Viu-se mais tarde que isto não era correto, e que o átomo continha partículas ainda menores. Estudadas, chegou-se à possibilidade de controlá-las e usá-las para diversos fins, entre os quais o uso da enorme energia que se esconde dentro dos átomos.

O físico inglês Chadwik31 descobriu então em 1932 que uma dessas partículas, os nêutrons, podiam penetrar em outros átomos. Físicos alemães e austríacos32 descobriram em 1938 que eles podiam “quebrar” certos átomos de urânio, e que nessa operação estes emitiam novos nêutrons que quebravam outros átomos, numa reação em cadeia.

Em 1942 foi a vez do físico Italiano Enrico Fermi descobrir como controlar essas reações em cadeia e construir o primeiro reator nuclear, a partir da fissão do urânio. Verificou-se que pela fissão do urânio podiam ser produzidos outros elementos radioativos. A bomba atômica viria quase em seguida, experimentada num teste realizado em 16 de julho de 1945, num deserto do estado de Novo México nos Estados Unidos. É muito citada a frase (hoje traduzida de mil formas), dita depois desse teste por Openheimer, o cientista que dirigia a experiência, citando um texto sagrado hindu: “Tornei-me a Morte, Destruidora de Mundos”...

Imediatamente depois deste teste o governo norte-americano decidiu terminar uma guerra que já estava ganha,34 lançando duas bombas no Japão: em Hiroshima, em 6 de agosto de 1945, e em 9 de agosto outra em Nagasaki.

Nesta última já se usou como combustível o plutônio, elemento radioativo criado nos reatores atômicos. Foi o horror que todos conhecemos. O deslocamento de ar produzido por essas explosões destruiu inteiramente essas duas cidades e o enorme calor matou imediatamente 140.000 pessoas na primeira dessas cidades e 80.000 na segunda, sem contar os que morreram posteriormente, vitimas das radiações. Foram mobilizados médicos e enfermeiros de todo o Japão para atender os sobreviventes. Até o governo americano, irresponsavel responsável por essa primeira tragédia nuclear, mandou profissionais da saúde para lá.

Com a capitulação do Japão começou a chamada Guerra Fria. Ela recebeu esse nome porque a corrida armamentista em que já estavam empenhados os vitoriosos da Segunda Grande Guerra passou à necessidade de se construir também bombas atômicas, e o incrível poder dessa bomba tornava impossível um enfrentamento direto entre as grandes potências. Uma guerra atômica entre dois pequenos países já desencadearia uma enorme destruição na Terra.

A luta pela proibição de testes nucleares

Foi quando começou a prevalecer um pouco de bom senso. O primeiro acesso ocorreu diante dos riscos que representavam os testes nucleares. Como a bomba tinha passado de arma de destruição a arma “somente” de dissuasão, a corrida rumo a ela tomou ainda mais força. Diferentes países que podiam desenvolver essa tecnologia se lançaram a fazer testes, agora já com o empolgamento dos cientistas, dos governos e dos militares, e até para impressionar seus eventuais inimigos. Foram feitos mais de 2.000 testes de 1945 a 1998, em diferentes lugares do mundo.

E com isso começou a aparecer mais nitidamente o que o horror imediato das bombas de Hiroshima e Nagasaki esconderam, pelo efeito destruidor do calor e dos deslocamentos de ar: a difusão de partículas radioativas em cada um desses testes. Eles eram feitos em lugares desertos, em subterrâneos, em altas altitudes ou dentro do mar. Mas pela ignorância dos efeitos inclusive letais da radioatividade que era espalhada nesses testes muita gente foi atingida e sofreu as consequências.

É significativo nesse sentido o movimento antinuclear que surgiu na Europa a partir do Cazaquistão, que denuncia os efeitos dos 400 testes feitos nessa região pela União Soviética39. Um dos principais animadores desse movimento, Karipbek Kuyukov, nasceu 1968 deformado, sem seus dois braços. Vivendo a 90 quilômetros do local dos testes, sua mãe fora contaminada pela radioatividade emitida nesses testes. Hoje com 45 anos de idade, ele é um artista que pinta seus quadros segurando os pinceis com os lábios, e se movimenta pelo mundo afora na luta contra a proliferação de armas atômicas.

O primeiro Tratado de interdição dos testes nucleares foi parcial, em 1963, autorizando somente os testes subterrâneos. A interdição completa, com um novo Tratado, foi feita somente em 1996. Mas os senhores tem certamente acompanhado os acontecimentos com os testes nucleares feitos pela Coreia do Norte, que naturalmente não assinou nenhum desses Tratados...

A luta pela não proliferação de armas nucleares e a destruição das existentes

Em novo acesso de bom senso conseguiu-se em 1968 alguns anos depois do Tratado de interdição de testes nucleares, construir um Tratado internacional de não proliferação da bomba atômica, conhecido como TNP. Esse Tratado, que entrou em vigor em 1970, foi assinado por praticamente todos os países do mundo mas não necessariamente ratificado pelo respectivos parlamentos. Cinco desses países - todos os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU - reconheceram dispor da arma.

Mas estamos ainda longe de interromper a efetiva proliferação de armas nucleares, e ainda mais longe de destruir as existentes.O Tratado não impede, por exemplo, como já lembramos, que a Coreia ainda insista. E os movimentos antinucleares alertam para os riscos de “acidentes” pelo disparo acidental ou por decisão de mentes doentias. E exigem que sejam desmontadas todas as bombas existentes.

O Programa “Atomos para a Paz”

O Presidente norte americano Eisenhower lançou, em 1953, o programa “Atomos para a Paz”. Há os que digam que essa iniciativa foi uma simples manobra política dos EEUU, na incerteza do que ocorreria na União Soviética depois da morte de Stalin. Com isso o programa atômico poderia ser redirigido a uma utilização a que o bom senso obrigava, depois do horror de Hiroshima e Nagasaki. E os EEUU não parariam de construir suas bombas.

Mas manobra política ou não, o programa soou como uma necessidade evidente, e uma clara prova de que o bom senso aumentava e poderia de fato prevalecer, ao estimular um uso ainda incipiente dos reatores nucleares para um novo fim pacífico, que é a produção de energia elétrica.

Mas foi pior a emenda do que o soneto: hoje se sabe que a construção de usinas nucleares pode encobrir o objetivo de produzir a bomba. Não é outra a acusação que se faz ao Iran. Pior do que isso: este novo tipo de manipulação da energia do átomo pode ter ele mesmo funestas consequências. Pouco a pouco vai se tornando claro que as usinas nucleares para produção de energia elétrica são mais perigosas para a Humanidade do que as próprias bombas atômicas.

Estas podem explodem, com os grandes danos que provocam, inclusive com a difusão de elementos radioativos, que as usinas nucleares fabricam continuamente em grandes quantidades, por força da própria tecnologia usada em seu funcionamento. E como aconteceu em Chernobyl e Fukushima - espalham essas partículas a grandes distâncias, pela força incontrolável do vento. Alem de guardarem em seu ventre imensos estoques desses elementos químicos, transformados em lixo atômico, até o dia em que se possa, com enormes gastos, colocá-lo em depósitos definitivos, de forma a proteger muitas e muitas gerações da radioatividade que emitem. Por quanto tempo?, perguntei recentemente a um ex-responsável pela destinação do lixo atômico francês.45 Sua resposta: “pela eternidade”...

A luta pelo abandono da opção nuclear para produzir energia elétrica

Em consequência disso – o risco de acidentes e a custosíssima e complicada destinação do lixo atômico - hoje se trava uma terceira luta contra o nuclear: a que visa abandonar a opção nuclear para produzir energia elétrica.
Infelizmente no entanto – e este é um dos fatos que tornam extremamente necessário trazer aos senhores Bispos brasileiros estas informações – esta luta está crescendo nos países do Primeiro Mundo mas é incipiente no Brasil, e aqui encontra duras resistências, inclusive dentro de nosso próprio governo. Muita gente em nosso país se opõe a essa interrupção também em nome de um progresso cientifico que na verdade passaria por cima da ética.

No Primeiro Mundo a sociedade, alertada por cientistas e políticos não cooptados pelo lobby nuclear e progressivamente melhor informada dos riscos que o mundo corre, começou a entrar em cena efetivamente como ator político. Um número crescente de partidos, sindicatos, ONGs e movimentos sociais (na Alemanha, na França, nos Estados Unidos, no Japão, entre outros) protesta e denuncia o que se passa com as usinas nucleares, exigindo que se proíba o prosseguimento sem limites da aventura nuclear para outros fins que não sejam os humanitários.

Essa é a luta que mais nos interessa hoje no Brasil. Seria necessário que “importássemos”, das antigas metrópoles, a tomada de consciência que está nelas crescendo. É preciso que saiamos da superficialidade em que o tema é tratado no Brasil, como se fosse uma simples questão técnica.

Os riscos de acidentes

Sabemos todos que não há obra humana cem por cento segura, por mais que tecnocratas e cientistas autossuficientes possam se considerar deuses que tudo resolvem. Alem dos problemas que podem ser criados pelo desgaste de materiais, pelo mau funcionamento de mecanismos, por erros dos seres humanos que operam os instrumentos dos reatores. E a combinação desses fatores podem provocar tanto simples “incidentes” técnicos como “acidentes” graves, numa escala que vai de um a sete, na linguagem criada para classificar esses problemas.

Ora, depois de uma bateria de “incidentes” por essa combinação de fatores, em vários países que tinham construído reatores48, ocorreu em 1979 nos Estados Unidos, em Three Miles Islande, o primeiro “acidente”, ainda de nível 5 mas que chegou ao limite da catástrofe. Não se sabe muito bem quanto mal foi feito a seres humanos, segredo “oblige”. Mas o governo americano, assustado, tratou imediatamente de não mais autorizar a construção de novas usinas no país, alem das 104 que já existiam.

Em 1986 foi a vez de um ”acidente” já de nível 7 ocorrer em Chernobyl, na então União Soviética Desta vez foi mais difícil esconder os dados, porque uma nuvem, com partículas radioativas de césio-137 se espalhou pela Europa toda, e logo sensores da Escandinávia identificaram algo estranho no ar. A União Soviética tentou ainda controlar as informações, dizendo primeiro que tinha havido somente um incêndio, para depois dizer que um acidente na usina tinha causado 56 mortes. Mas houve 400 vezes mais radiações do que as provocadas pela bomba de Hiroshima.

Hoje se sabe que foram evacuadas e reassentadas 200.000 pessoas, e 600.000 e 800.000 cidadãos e soldados (nunca há dados precisos...) foram mobilizados para, dizem, apagar o incêndio, mas de fato para tentar segurar a difusão da radioatividade. Um dos cientistas russos mais importantes, a quem o Presidente Gorbatchev pediu que visitasse (logo em seguida) a usina acidentada e apresentasse o que tinha de fato ocorrido numa conferência internacional em Viena, convocada especialmente para esse fim, cumpriu sua tarefa e depois se suicidou.

Dos convocados para combater a difusão da radioatividade – tecnicamente chamados de “liquidadores”, que inclusive não conheciam o risco que iriam correr – mais de 200.000 já morreram. Cientistas da atual Ucrânia e Bielorússia calculam, em estudo publicado nos Anais da Academia de Ciências de Nova York de 2009, que o total de mortes por esse acidente, até os dias em que concluíram seu estudo, já se aproximava do milhão. É praticamente impossível saber quantos outros europeus já morreram ou ainda morrerão pela ação das partículas radioativas que contaminaram seus alimentos, sua terra, seu leite, seus animais. Nada é dito pela Organização Mundial da Saúde, que deveria realizar os estudos correspondentes. Ela na verdade só informa o que é autorizado pela Agencia Internacional da Energia Atômica, AIEA – um estranho órgão das Nações Unidas encarregado tanto de promover a energia atômica como de fiscalizar o seu uso...

O chamado “sarcófago” com 250.000 toneladas de concreto, com que se procurou isolar a usina que explodiu, já começou a vazar radioatividade, 25 anos depois. E a Ucrânia pede doações de outros países europeus para a construção de um novo sarcófago que cubra o primeiro, e que lhe custará 740 milhões de euros. O acidente inutilizou por centenas de anos um território equivalente a um Portugal e meio (155.000 quilômetros quadrados)53, no qual existem hoje uma serie de cidades-fantasmas abandonadas. Atualmente 1,5 milhão de pessoas, das quais 437.000 crianças, para as quais a radioatividade é mais perigosa, vivem em zona contaminada.

Em março de 2011 aconteceu um novo acidente grave, desta vez no Japão: depois de um fortíssimo terremoto e de um tsunami de grandes proporções, explodiu um dos reatores da usina nuclear da cidade de Fukushima.

Não precisarei aqui repetir tudo que ocorreu e está ocorrendo em Fukushima e em todo o Japão, de gravidade equivalente a Chernobyl, e onde a radioatividade se espalhou não somente pelo vento mas também pela chuva que a fez penetrar no solo e no mar, e que continua até hoje contaminando peixes56. Todos nós temos tido a oportunidade de saber, através das noticias que de lá nos chegam, inclusive de repetidos vazamentos de radioatividade da usina destruída.

A população do Japão, já ferida pelas bombas de Hiroshima e Nagasaki, foi profundamente atingida psicologicamente pelo acidente de Fukushima, em termos de sentimento de insegurança, desconfiança das instituições, divisão da sociedade. Seria importante no entanto testemunhar, pelo contato que tenho tido com muitos sobreviventes dessa tragédia, em encontros como a Rio+20 e o Fórum Social Mundial recém realizado na Tunísia, que muitos japoneses, especialmente jovens, assumiram quase como um dever alertar os outros povos do mundo para os riscos das usinas nucleares.

Ora, diante da gravidade da questão, o que dizer das usinas de Angra? Construídas numa praia chamada pelos indígenas locais de Itaorna, que na sua língua quer dizer Terra Podre, numa região sujeita a grandes deslizamentos das encostas, suas condições de segurança não se tornaram conhecidas dos bancos financiadores europeus... Situadas entre Rio e São Paulo, as duas maiores cidades brasileiras, facilmente alcançáveis por nuvens radioativas, que Deus nos guarde de eventos geológicos ou ambientais negativos, de falhas humanas ou de problemas nos equipamentos da usina.

Mas, como dizia um bondosíssimo pároco a alguém que se opunha à construção, nos anos 80, da que seria a primeira usina nuclear do Brasil, em Jureia, no sul do Estado de São Paulo, não havia que se preocupar com os efeitos letais das usinas: um dia todos teremos que morrer... Ou, como diriam pessoas com coração mais frio, como parecem ser nossos nucleocratas, acidentes são sempre possíveis em todas as atividades humanas. E eles não tem sido tantos assim com usinas nucleares: somente três mais graves, no espaço de cinquenta anos... Um cálculo sem emoções talvez no entanto nos indicasse que já mataram mais gente dos que as bombas atômicas.

O lixo atômico

Do segundo grave problema das usinas nucleares muito pouco ou nada se fala no Brasil: o lixo atômico que é por elas produzido de forma contínua, em razão de seu próprio funcionamento. Notem que não falo aqui dos instrumentos e materiais usados para operá-las, e que por isso foram contaminados, tornando-se radioativos. Estes, por serem de fraca ou média radioatividade, são guardados em Angra inclusive ao ar livre, em toneis que supostamente impedem que irradiem. O mesmo problema foi vivido em Goiânia, em que tudo que foi contaminado pela radioatividade – um total de 13500 toneladas de materiais - foi enterrado num deposito de concreto perto da cidade, com a determinação de não ser tocado durante os próximos 180 anos.

O que fazer com o lixo de alta radioatividade, proveniente das varetas com combustível usado dos reatores de Angra, que ao que tudo indica nem começou a ser analisado em nosso país.

Essas varetas contem também muitos produtos da fissão do urânio, que são elementos químicos de alta radioatividade artificial. É o caso por exemplo do césio-137 – o mesmo da pastilha aberta em Goiânia - ou do Plutônio (cujo nome, Deus dos Infernos, indica bem seu caráter daninho...), extremamente tóxico (um miligrama já é fatal para um ser humano) e que leva nada mais nada menos que 24.100 anos (pouco mais do dobro da historia da humanidade...) para perder metade de sua radioatividade. Tais varetas são atualmente estocadas em piscinas dentro do próprio edifício do reator, até que se esfriem para serem levadas ao necessário destino final. A água dessas piscinas tem que ser permanentemente mantida em baixa temperatura, para evitar a explosão desses elementos químicos.

Para se ter uma ideia do que significam esses depósitos provisórios, na piscina ao lado do reator acidentado em Fukushima encontram-se acumuladas 240 toneladas de césio 137. Um novo tipo de acidente que pode ocorrer é a interrupção do resfriamento dessas piscinas, por um corte de energia elétrica nas maquinas que a resfriam. Um susto desse tipo ocorreu há pouco, lá mesmo em Fukushima. Mas a maior preocupação é com a possibilidade de um novo terremoto que destrua a piscina e espalhe o césio-137 nela contido. Esse cenário já foi levantado em matéria de um hebdomadário francês, que fez uma alentada reportagem sobre o problema com o titulo: “Fukushima – e se o pior ainda estiver por vir?”

A França por sua vez é o país que, com suas 58 usinas, guarda a maior quantidade de plutônio do mundo – que resulta da fissão do urânio nos reatores nucleares. Em fim de 2006 ela tinha entrepostas 294,2 toneladas desse elemento, muito útil para fabricar bombas atômicas. O grande problema portanto é o destino a dar, depois de retirados das piscinas, a esses restos do funcionamento das usinas constituído como já falei por enormes quantidades de elementos altamente radiativos que precisam ser guardados fora do alcance dos seres humanos durante centenas e mesmo milhares de anos. É vasta a literatura que já existe sobre os problemas, simplesmente enormes e apavorantes, enfrentados com o lixo atômico no Primeiro Mundo.

Trata-se de uma verdadeira dor de cabeça ainda não inteiramente resolvida em nenhum país, com construções interrompidas de depósitos em montanhas longínquas, ou como a Finlândia e a própria França que estão invertendo grandes quantidades de recursos na construção de tuneis profundos, onde enterrar “para a eternidade” seu lixo atômico de alta radiatividade. Na França, no local subterrâneo em que poderá ser enterrado esse lixo, constroem-se 320 quilômetros de galerias a 500 metros de profundidade. Imagine-se o custo disso. 63 E no Brasil, o que vai ser feito? Teremos recursos para as custosas e demoradas obras de construção desses depósitos?

Imaginem os senhores Bispos o que pode acontecer com o lixo já acumulado nas piscinas de Angra sem que absolutamente nada tenha sido feito nem pensado – que se saiba – para dar um destino definitivo a esse lixo atômico. O máximo de que se fala são pretendidas licitações entre municípios desinformados da dimensão do problema, para neles guardar pelo menos o lixo de media e baixa radioatividade, como em Goiânia.

Agregue-se a esses pesadelos aquele que vivem os países com muitos reatores nucleares, obrigados a transladar seu lixo radioativo de um canto para outro, das usinas aos centros de retratamento do combustível ou aos depósitos de estocagem até que fiquem prontos os depósitos definitivos. Trens carregados de containers dos quais pode escapar radioatividade, trafegando quase escondidos em horas de menor presença humana, caminhões que podem tombar, dentro de cada país e pela Europa afora, até inclusive a longínqua Sibéria. Na França, mais de 850 toneladas de elementos altamente radioativas, distribuídos em 450 comboios, partem ao longo de cada ano das usinas rumo à estação de tratamento de La Hague.

É uma verdadeira loucura – e há muitas mais, só no capitulo do lixo atômico65. Chego à conclusão de que tem razão os que chamam os nucleocratas de nucleopatas.

No Brasil, sem linhas férreas, tais comboios, se chegarem a existir - não temos ainda para onde levar o combustível usado depois de sua temporada nas piscinas de resfriamento de Angra... – vão cruzar com segurança nossas estradas apinhadas de carros particulares e caminhões? Quem tem uma informação consistente sobre o modo como as varetas de combustível de urânio enriquecido, preparadas pelas Industrias Nucleares Brasileira – INB em Rezende, são levadas a Angra para serem colocadas nas usinas? Se já o descarte de simples fontes radiativas de aparelhos usados na medicina parece ser pouco controlado, o que dizer de outros deslocamentos de material radioativo que possivelmente já cruzam conosco em nossas estradas sem que de nada saibamos?

Os responsáveis pelo setor nuclear estarão pelo menos informados do que se passa por exemplo na Europa, e terão um mínimo de consciência de todas as dimensões da produção de energia elétrica com reatores nucleares, em termos de custos e de riscos para a população, que eles teriam que resolver? Porque criarmos esses verdadeiros pesadelos que ainda não temos, ou pelo menos ainda não ganharam a dimensão que têm nos países do Primerio Mundo, e que por isso mesmo estão decidindo “sair do nuclear”?

Os mitos das usinas nucleares

A insistência ilógica de nossas autoridades em manter, na contra-mão, o programa nuclear brasileiro, se apoia em diferentes razões pouco louváveis, das intenções escondidas na cabeça dos militares à ganância dos que querem ganhar muito dinheiro ainda que a um custo social altíssimo.66 Mas ela se apega também a uma serie de mitos que foram espalhados pelo mundo afora para nos enganar a todos, e que a análise do que se passa hoje no Primeiro Mundo derrubam por inteiro.

O primeiro mito é o de que a energia nuclear é uma energia limpa, porque não produz o carbono que contribui para o agravamento de problemas como o do aquecimento global. Esquecendo o carbono produzido nas atividades de mineração de urânio, de construção das usinas e depósitos de lixo radiativo, de transporte desse mesmo lixo, pode ser considerado limpo um processo que produz automaticamente o pior lixo que se pode conceber, de elementos radioativos que serão deixados como herança maldita para muitas das gerações que nos sucederão? Essa ameaça já pesa enormemente sobre a Humanidade, somente com o lixo que já foi produzido e está estocado, e que aumentará ainda mais enquanto as usinas nucleares estiverem funcionando...

O segundo mito é de que a energia nuclear é barata. Se for considerado somente o custo de operação de usinas seguramente ela será possivelmente mais barata que as “chaleiras” que usam combustíveis fosseis. Mas se agregarmos ao custo das usinas os gastos provocados pelos desastres – na verdade assumidos pelos governos e não pelas empresas que as operam – seu custo se torna estratosférico.

Basta lembrar também do custo do sarcófago de Chernobyl e do que agora deverá recobri-lo. Lembremos também da perda de grandes territórios inutilizados para a produção de alimentos, na Ucrânia, Bielo-Russia e Japão. E o custo da descontaminação? O ex-ministro Delfim Neto escreveu há tempos um artigo em que se declara antinuclear por essa razão, ao indicar que se prevê um custo de 700 bilhões de dólares só para a descontaminação da radioatividade difundida no Japão com o desastre de Fukushima67 . Nem falemos dos custos com a cobertura dos direitos das vitimas, com sua evacuação parar alojamentos provisórios ou definitivos, tratamentos médicos e hospitalares, pensões e outras compensações por terras e bens perdidos. É incluído no custo declarado das usinas o de seu desmantelamento – ou descomissionamento, como se diz tecnicamente – obrigatório quando se atinge o “prazo de validade” de uma usina, e que leva tanto tempo como a sua construção?68 Se agregarmos a todos esses custos aqueles da construção de depósitos definitivos de lixo atômico, diremos que absolutamente não vale a pena usar a opção nuclear para produzir uns tantos megawatts de energia.

O terceiro mito é o de que é um processo sustentável, pois usa um combustível mais facilmente accessível e disponível em grandes quantidades. A França já esgotou a mineração de todo o urânio de que dispunha em seu território e teve que inventar o combustível MOX, produzido com o único retratamento possível do combustível usado, o que a obrigou a grandes inversões em instalações de alta tecnologia e risco como as usinas de La Hague, que tendem também a ser fechadas. E recentemente se viu obrigada e está envolvida em aventuras militares duvidosas para assegurar que não perderá o acesso às minas de urânio do Mali.

Os nucleocratas mostram no entanto com orgulho os modernos e bonitos edifícios das usinas de Angra, à beira de um mar azul, dizendo que exigem menos espaço que as barragens hidrelétricas, com todas as suas consequências ambientais e sociais negativas69 – o que sem dúvida é verdade, veja-se Belo Monte. Usando essas aparências, eles gentilmente convidaram há pouco o Presidente da CNBB juntamente com o senhor Bispo da diocese de Itaguaí para visitar as usinas, numa operação típica de envolvimento, certamente por receio de que nossa Igreja passe a se empenhar no combate à energia nuclear.

Mais alem dos mitos, apela-se também para a questão das alternativas: o país precisaria contar com a energia nuclear para fazer frente às suas necessidades de energia no processo de desenvolvimento, por falta de outras opções. Nem questionemos o modelo de desenvolvimento que hoje prevalece no Brasil, confundido com o simples crescimento econômico, já denunciado até em encíclicas papais. Mas nossos cientistas afirmam com todas as letras que não é verdade a inexistência de alternativas. Mais do que isso, dizem que o Brasil é um pais abençoado exatamente porque dispõe de muitas outras fontes energéticas, sem precisar enveredar pela opção nuclear que hoje os países ricos querem abandonar.

São enormes as possibilidades hoje abertas por essas outras fontes energéticas, como por exemplo a eólica e a solar. Nesta última a Alemanha vem dando um notável exemplo, com uma porcentagem cada vez mais significativa da contribuição desse tipo de energia para satisfazer suas necessidades. O Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, vinculado à Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, está exatamente chamando a atenção para isso, com sua Campanha Nacional pela Produção e Uso da Energia Solar Descentralizada.

Essa Campanha e os movimentos antinucleares brasileiros – a Coalizão por um Brasil Livre de Usinas Nucleares e a Articulação Antinuclear Brasileira - estão pretendendo realizar proximamente em nosso pais um Fórum Social Temático sobre a Energia. Se o conseguirmos talvez “acordemos” mais gente para enfrentar esse desafio. E se nos fosse permitido sonhar, um passo enorme nesse sentido seria dado se uma Campanha da Fraternidade da CNBB tomasse a Energia como tema.

Os enfrentamentos que nos convidam a atuar em defesa da vida

No enfrentamento de posições que acontecem hoje em dia, estamos ainda longe de poder anunciar que conseguimos inverter as tendências73. Se nos países ricos a defesa da vida está tendo um certo número de vitorias, nos países pobres é o lobby nuclear que galopa à nossa frente, até porque não temos uma sociedade suficientemente organizada e informada para enfrentar os discursos, a propaganda, as aparências e a grande quantidade de recursos que investe para envolver as pessoas. Mas se a inércia pode nos colocar no campo dos que tiram proveito econômico da tragédia do nuclear, porque não a superarmos e nos associaremos ao verdadeiro movimento de tomada de consciência que cresce no mundo?

Tenho que fazer um pedido aos senhores Bispos, para finalizar minha exposição, que não tem caráter acadêmico mas militante. Muitos brasileiros e brasileiras se movem para enfrentar o lobby nuclear no Brasil, a exemplo de tantos que lutam contra usinas nucleares nos países desenvolvidos. Suas organizações e movimentos lançaram uma Iniciativa Popular de Lei para vedar constitucionalmente a construção de usinas no Brasil e para determinar que as existentes sejam imediatamente desmontadas. O formulário desta Iniciativa lhes será entregue logo a seguir.

Se a CNBB der seu apoio a essa Iniciativa, como o fez com as Leis contra corrupção eleitoral e pela Ficha Limpa - e este é o pedido que lhes faço, em nome de todos que estão engajados pelo Brasil afora nesta luta - nossa esperança de que consigamos enjaular de novo o Demônio receberá uma forte injeção de ânimo e de coragem.

Ele anda à solta pelo Brasil, à força de muito dinheiro e muita irresponsabilidade. Chamemos todos os nossos exorcistas. Unamo-nos inclusive aos que fazem “descarregos”. A hora é de concentração espiritual. Para libertarmos o Brasil das usinas nucleares.

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