Odesson Alves Ferreira é, mais que um sobrevivente, um vencedor. No maior acidente radiológico do mundo, perdeu seis parentes. Ele próprio tem sequelas causadas pelo Césio 137 e pela demora de tratamento adequado. Nada disso impediu, entretanto que se mantivesse na luta e se tornasse, inclusive, presidente da Associação das Vítimas do Césio (AVCésio), para melhor poder defender seus companheiros. No dia 13 de setembro o desastre de Goiânia completou 25 anos. O texto abaixo foi escrito por Odesson especialmente para um evento do qual participou ontem, dia 28 de setembro. É uma fala que leva à revolta pela inépcia e pelo descaso com que as vítimas do acidente foram e continuam sendo tratadas. Ou melhor: pela forma com que tentam negar-lhes o tratamento ao qual têm todo o direito. Odesson sabe que sempre teve e terá a nossa solidariedade. Esperamos que, ao lê-lo, outras pessoas igualmente se indignem e ofereçam seu apoio a este luta que, sem dúvida, é mais que merecedora, justa e heroica. TP.

“Em setembro de 1987, Goiânia se apresentava ao mundo não por sua beleza ou pela corrida internacional de motos. Infelizmente a bela cidade ficara conhecida por uma desgraça anunciada, a qual maculou todo o estado, que sofreu preconceito do resto do país. O ocorrido há 25 anos não foi só um acidente; foi um desastre que arruinou centenas de pessoas, tirou vidas e causou discriminação ao estado inteiro.

Aquilo foi uma tragédia que trouxe danos incalculáveis. Por causa dela ficamos sem passado; perdemos parentes e amigos que, por medo do desconhecido, se afastaram de nós; perdemos a condição de trabalhar, o direito de ir e vir, nossos endereços, fotos e enxovais de casamento. Documentos e até animais de estimação foram tirados de nós da pior forma possível. Foram sacrificados com veneno e até por projétil de arma de fogo no meio da rua, como se fossem inimigos.


Fomos retirados de nossos lares no meio da noite e jogados em gramados de futebol como nos tempos do holocausto nazista. Lá, fomos lavados com produtos corrosivos como se fôssemos objetos. Foi muito triste e humilhante saber que estávamos contaminados ou irradiados, mas não só por césio, e sim pela irresponsabilidade de uns e incompetência de outros.


Sofremos as maiores atrocidades ao perder tudo que anos após anos conquistamos com o suor derramado no trabalho, cada um ao seu modo e condição, mas com honra e honestidade.


Jogaram-nos em corredores de hospitais sem ao menos esclarecer o que estava acontecendo. O local e as pessoas não estavam preparados para nos receber. Na verdade, mais parecia um campo de concentração para leprosos. Discriminados pelo preconceito de uma sociedade desinformada, era como se todos portassem as mais diversas doenças contagiosas.


De repente nos foi apresentado um grupo de pessoas que se diziam médicos, físicos e enfermeiros, mas na realidade para nós não passavam de corpos sem rostos, pois todos estavam paramentados como se fossem astronautas ou seres de outro mundo.


Com o passar dos dias começamos a perceber que os extra-terrestres na verdade éramos nós. Por causa do contato com material radioativo, as feridas abriram deixando nossos corpos como os de mortos vivos.


Constatação que ficou clara na visita que recebemos do então presidente Sarney, quando exigiram que tomássemos banho mais cedo pra colocar roupas limpas e que ficássemos sentadinhos em um canto expostos para visitação. Ali, acuados pela comitiva que apreciava talvez os últimos momentos de nós moribundos.


Eu disse ao governador Henrique Santillo que nossas famílias estavam passando necessidades aqui fora. Ele, com voz forte mas embargada, balbuciou: “fiquem tranquilos, meus filhos, pois suas famílias não ficarão desassistidas”. Ou seja: morram em paz. Ali me lembrei de que quatro dos nossos já haviam perecido, e então pensei quem será o próximo?


O medo era real, pois ao viajar para o hospital Marcilio Dias a impressão é de que seria ida sem volta e, dependendo da volta, teríamos que enfrentar a revolta dos algozes comandados pelo insano José Nelto, que irresponsavelmente incitava o povo para não deixar sepultar naquele campo santo os filhos da terra, mesmo que os túmulos fossem de concreto e caixões de chumbo, para que não pudessem mais sair.


O tempo passou; outra tragédia se anunciava. Foi quando alguém sugeriu que aquelas pessoas até então enjauladas saíssem para um passeio, quando seriam reapresentadas à sociedade. Mas deveriam sair escoltados pela polícia. Foi outra grande humilhação perceber o medo nos olhares assustados da população, nos parques e sorveterias.


Finalmente saímos da quarentena depois do natal. Meu destino foi morar temporariamente no albergue samaritano, onde minha família há dias já vinha sendo sugada pelos enxames de muriçocas.


Mais tarde, folheando o jornal, deparo com uma matéria onde a então diretora técnica da Fundação Leide declara que “algumas dessas pessoas não sobreviverão mais de dois anos e meio”. De novo começamos a interrogar: quem vai primeiro?


Graças a Deus a médica estava enganada. Mas talvez tenha sido pior, por que as autoridades começaram a imaginar que estavam dando muito às vítimas e então, pouco a pouco, foram tirando o mínimo que já nos era de direito. Foi assim com a fundação, a assistência e até com a pensão, que já era pouca e se tornou uma miséria.


25 anos se passaram e muitos dos companheiros realmente se foram. Aqueles que aqui estão vão morrendo à míngua, por inércia dos cientistas e cegueira da justiça, que prefere cruzar os braços e negar o nexo causal doença/acidente. E mais uma vez chegamos à de conclusão que o tão falado direito humano não alcança aqueles realmente necessitados.


Nesta data e em público imploro aos senhores governantes que façam uma reflexão sobre esses 25 anos. É hora de fazer um balanço: aproveitar o que foi positivo e desprezar aquilo que nada acrescenta; reconhecer as falhas e sem vaidade garantir o mínimo de dignidade a essas pessoas que ainda são cidadãs.


É inadmissível tantos bons profissionais exercerem suas funções com total amadorismo por falta de condições de trabalho, mesmo aquele postinho de saúde em que se transformou uma fundação só existe de direito, pois juridicamente o posto não existe de fato, porque simplesmente necessita de um decreto que o governo demora anos para assinar.


Falta vontade politica para resolver de vez um problema pequeno em relação à grandiosidade do desastre.


É preciso garantir acesso aos verdadeiros donos daquela unidade de saúde. É necessário ter acolhimento com humanismo para reconquistar o público alvo razão da existência da instituição, que hoje chamam de CARA.


Aqui faço um apelo: busquem pesquisadores capazes de nos dar uma resposta quanto às doenças que insistem em acometer os radio-acidentados. Estamos cansados de ouvir os médicos que têm vínculo com o governo dizerem que as doenças não têm nada a ver com o acidente radioativo.


Tenho certeza que eles dizem sem o embasamento que nós também não temos, mas posso afirmar que nexo causal doença e falta de assistência ceifou mais de 100 vidas, que de alguma forma foram vítimas do desleixo.


Peço em nome dos moradores da 57 que revitalizem a rua, ergam um memorial no lote que foi contaminado para que amenize um pouco aquele ar fantasmagórico.

Para finalizar quero dizer que por várias razões nós, vítimas do maior acidente radioativo fora de usinas, somos totalmente contra a mineração de urânio em alta escala, a construção de armas bélicas e as usinas nucleares.
Tenho dito”.

Fonte: Racismo Ambiental

por Odesson Alves Ferreira

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