Negligência em série: incidentes em Angra evidenciam perigo de nova planta nuclear e ampliação da licença de Angra 1

Falhas repetidas e falta de transparência na gestão das usinas nucleares de Angra dos Reis colocam especialistas em alerta. Governo Federal estuda implantar novas centrais nucleares mesmo sem respostas sobre incidentes recentes.

Os investimentos para estudos de viabilidade econômica do Governo Federal para retomar a construção de uma terceira usina nuclear em Angra dos Reis, ao custo de quase R$ 20 bilhões, somados à possibilidade da concessão de mais vinte anos para Angra 1, fizeram soar uma sirene entre especialistas em transição energética e ativistas da Articulação Antinuclear Brasileira. Uma série de incidentes recentes deixa exposta a fragilidade da gestão da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) atual e o quanto podemos estar diante de uma potencial tragédia de proporções inimagináveis caso o país siga o caminho de manter e, pior ainda, ampliar a participação nuclear em nossa matriz energética


Em menos de um ano, três ocorrências vieram a público, sendo que uma delas, gravíssima, levou seis meses sendo ocultada pela Eletronuclear.

Em março de 2023, o Ibama multou a Eletronuclear pelo vazamento de água radioativa da usina de Angra 1. O descumprimeiro da licença de operação com descarte irregular de substância radioativa pode levar ao pagamento de R$ 2,1 milhões de reais ao órgão ambiental.

O que o valor da penalidade não demonstra é que o vazamento de água altamente contaminada havia acontecido em setembro de 2022 e a ocorrência foi abafada, sem comunicação às autoridades, durante meio ano. Além disso, o pagamento não supre o medo e a apreensão de quem vive nas proximidades da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto. A Polícia Federal investiga as responsabilidades.

“O resultado das inspeções realizadas evidenciou que, durante uma operação de rotina de recirculação e purificação de água de operação, ocorreu a falha de uma válvula de isolamento, propiciando a liberação de um volume de água para o canal de descarga da usina, estimado em, no máximo, 90 litros”, pontua a nota da CNEN.

Outra ocorrência grave tornou-se pública em agosto deste ano. Através de nota, as Indústrias Nucleares do Brasil admitiram não saber o que aconteceu com duas cápsulas contendo 8 gramas de urânio enriquecido UF6 (testemunho do gás hexafluoreto de urânio) nas áreas de armazenamento da Fábrica de Combustível Nuclear em Resende, cidade no sul do estado do Rio de Janeiro. O desaparecimento do material radioativo, que deveria ser altamente controlado, aconteceu em julho e novamente o acontecimento foi abafado durante quase um mês.

A situação mais recente também segue sem resposta. Duas semanas após admitir a presença de manchas de óleo num canal de efluentes da central nuclear de Angra dos Reis, a Eletronuclear ainda não apresentou uma explicação à comunidade sobre o ocorrido. Ibama, CNEN e prefeituras foram informados. Apesar da empresa afirmar que o material não tem relação com as atividades nucleares, a comunidade do entorno vive momentos de apreensão. O resíduo apareceu poucos dias antes da parada técnica de manutenção de Angra 2 e não se sabe que tipo de riscos apresenta.

Falta transparência

A Sapê – Sociedade Angrense de Proteção Ecológica alerta para o fato de temas gravíssimos como estes serem ocultados dos moradores de Angra. "Houve um vazamento de água contaminada com resíduos radioativos que levou seis meses para ser noticiado. Isso levou a uma enorme mobilização, inclusive na Câmara de Vereadores que ressuscitou um projeto que criava uma comissão de acompanhamento das usinas. Mesmo sendo um projeto bem antigo, nunca havia sido colocado em atividade e ainda hoje não começou a funcionar de fato", conta a coordenadora da SAPÊ, Sylvia Chada. Até hoje, a comissão da qual a Sapê tem um assento não se reuniu para acompanhar incidentes, funcionamento das usinas e cumprimento das condicionantes. "Transparência é uma palavra que não existe no vocabulário da Eletronuclear", dispara. "A indústria nuclear tem todo um ranço da ditadura".

"Nunca houve transparência sobre os indícios de contaminação. Até hoje, em todos os acidentes que aconteceram, nunca fomos informados sobre os verdadeiros riscos à população", lamenta a Coordenadora Geral da Sapê, Monique Chessa. Neste cenário, ativistas estão preocupados com o que poderá acontecer, caso a operação torne-se ainda maior.

"Uma usina velha"

A possibilidade da ampliação da vida útil de Angra 1 é uma preocupação dos moradores da região. "A usina já deveria ter sido descomissionada, desmontada e estar encerrando sua vida útil. A negação disso pode ampliar o risco de acidentes", alerta a coordenadora da SAPÊ – Sociedade Angrense de Proteção Ecológica, Sylvia Chada. A entidade cobra transparência da gestão da CNEN. "Temos o ponto do controle social, de realmente estabelecer formas eficazes para acompanhamento do cumprimento de condicionantes, das medidas mitigatórias, num espaço real de diálogo", enfatiza.

Professora doutora no curso de Ciências Socioambientais da PUC, a socióloga Marijane Vieira Lisboa tem grande preocupação com a operação em Angra dos Reis. Para a ativista ambiental, membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), o Brasil tem alternativas melhores para gerar energia. "O custo da energia nuclear é caríssimo, sem contar a dificuldade de manejo dos resíduos", lembra. "Conceder mais 20 anos para Angra 1 é uma temeridade. Se uma casa ou uma ponte com 40, 50 anos de idade já é um edifício que apresenta desgastes, imaginemos como pode estar a integridade das instalações nucleares que começaram a ser construídas em 1972", alerta.

Outro questionamento está no campo das condicionantes. Recentemente, a Prefeitura conseguiu embargar a obra de Angra 3 por ausência de pagamento das condicionantes. A Eletronuclear afirmou que não havia feito o repasse do recurso ao poder público por falta de projeto e conseguiu reverter o embargo. Porém faltam a definição sobre os investimentos públicos para a conclusão de Angra 3, o novo PAC cobriu apenas o estudo de viabilidade da obra. "Numa situação como essa, o destaque vai para quantos empregos poderiam ser perdidos com a obra e isso mexe com a opinião das pessoas, mas há muitos outros pontos que precisam ser debatidos", avalia Sylvia.

"Quando há notícia de incidentes, a população fica preocupada, mas na maioria das vezes não cobra explicações. Acham que a usina gera emprego e que a população precisa dela, mas na verdade não há geração de emprego. Eles têm esperança de que com a construção de Angra 3 haja oportunidades de trabalho, só que isso é mito das usinas. O que ela gera na população é medo", completa a coordenadora geral da Sapê, Monique Chessa.

A usina tem uma série de compromissos com as comunidades indígenas e quilombolas, exigência como uma feita pelo Ministério Público de colocar sinal de internet para estas populações – o que foi feito. Porém processo de negligência no cumprimento do projeto de saneamento básico da aldeia Sapukay (grito de socorro em guarani). Mas a relação é mais complexa. "A Eletronuclear se utiliza das comunidades tradicionais em momentos críticos, como quando houve uma audiência na Praia Brava para apresentação dos programas socioambientais que ela era obrigada a desenvolver. A companhia colocou ônibus no quilombo do Bracui e encheu de Guarani, de crianças e enche a reunião que era sua obrigação por exigência do IBAMA. E essas pessoas ficaram na atividade à noite, voltaram tarde pra casa, mesmo sem terem relação direta nenhuma com o que seria debatido. Foram levados para encher auditório e bater palma", lamenta Sylvia.

Mais uma? Risco não supera benefícios

No debate sobre a conclusão das obras de Angra 3, há diversos pontos que precisam ser compreendidos pela população. Embora discutir em profundidade riscos e benefícios da energia nuclear exija o domínio de informações científicas, há coisas básicas ao acesso de todos, como o fato de que de repente, mesmo as melhores usinas podem explodir, como Fukushima, no Japão; que os rejeitos nucleares são um problema insolúvel pois não há ninguém que queira ser vizinho de um depósito desse tipo, e que a morte e as enfermidades por radiação são terríveis.

A decisão sobre a inclusão de novas plantas nucleares no sistema brasileiro passa também pelo bolso do consumidor. O professor aposentado da UFPE, físico com doutorado pelo Laboratório de Fotoeletricidade e Comissariado de Energia Atômica da França, Heitor Scalambrini Costa, critica a posição do Governo Federal de considerar Angra 3 uma prioridade. "A contribuição da energia nuclear na matriz energética do Brasil, por exemplo, continuará inexpressiva, em torno de 2% mesmo com Angra 3, enquanto o preço do megawatt-hora de origem nuclear chega a ser de 4 a 6 vezes maior, quando comparado a geração solar, eólica e hidráulica", esclarece.

Ativista ambiental e membro da Articulação Antinuclear Brasileira (AAB), o professor acredita que a subtração destas informações no debate público acontece para evitar formar uma opinião contrária à energia nuclear. "A nova usina implicará um aumento substancial na conta de energia de todos os consumidores brasileiros durante algumas décadas", alerta. Além disso, R$ 17 bilhões que faltariam para “acabar” Angra 3 (até agora gastou-se R$ 7,8 bilhões) dariam para abastecer 1 milhão de casas com módulos solares de 3 kWp cada uma (ao preço unitário de R$ 17 mil).

Acidentes estão no horizonte

Apesar do material nuclear de uma usina ser muito diferente daquele usado em uma bomba e, por isso, não explodir, acidentes existem nas usinas, e são classificados em uma escala introduzida pela AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) no ano de 1990. A Escala Internacional de Acidentes Nucleares e Radiológicos (INES – International Nuclear Event Scale) estabelece uma escala de gravidade de incidentes e acidentes nucleares, facilitando assim a compreensão e as medidas para enfrentar o evento. Ao todo são 7 níveis, sendo os 3 primeiros de incidentes e os 4 subsequentes acidentes. O acidente mais grave ou superior (nível 7) consiste no vazamento em larga escala, para fora da usina, de material radioativo, com efeitos amplos sobre a saúde da população e do meio ambiente. Sendo reconhecido nos níveis 6 e 7 os acidentes de Chernobyl, na Ucrânia (1976), o de Three Mile Island na Pensilvânia-USA (1979), e o de Fukushima no Japão (2011).

E vale o risco, sabendo que um acidente pode provocar uma tragédia social, econômica e ambiental de grandes proporções? "Sem dúvida, não existe nada de tão assustador do que um acidente com radiação liberada para o meio ambiente, atingindo toda forma de vida. A catástrofe de Fukushima provocou grandes emissões radioativas no ar, no solo e nas águas da região, e forçou cerca de 100.000 pessoas a abandonarem suas casas. Imagine agora o significado desta catástrofe para um país como o Brasil", avalia o físico.

"As normas e procedimentos internacionais impostas para garantir as condições de segurança de uma usina núcleo-elétrica são muito rígidas. E a probabilidade de um acidente de grandes proporções acontecer é pequena, mas mesmo assim sempre existe. Não existe risco zero de acontecer um acidente, mesmo o de nível 7", ressalta Dr. Heitor.

Parada de manutenção é operação gigantesca

Desde 25 de setembro, Angra 2 está em parada de reabastecimento – ação que deve ser concluída apenas no final de outubro com a troca de 28 toneladas de urânio. Dois mil profissionais são envolvidos nas mais de cinco mil atividades que envolvem a operação. Os trabalhos acontecem 24 horas por dia e serão substituídos 52 dos 193 elementos combustíveis no núcleo do reator. Angra 2 começou a ser construída em 1981, mas uma série de problemas postergou o início das operações para vinte anos depois.

A usina de Angra 1, que opera desde 1984, terá uma parada de 50 dias programada para começar em 28 de outubro com 4.800 atividades, incluindo a troca de um terço do combustível e inspeção da tampa do vaso de pressão de reator.
"É uma desfaçatez é considerar esta fonte importante e necessária para a transição energética no Brasil. De tão mal vista pela população, no imaginário popular a energia nuclear está associada a promover a morte, e não a vida. Torna obviamente desnecessário o uso desta perigosa, cara e suja tecnologia, pela extraordinária abundância de fontes renováveis de energia – sol, vento, biomassa, água, … – disponíveis no território nacional", aponta o professor Heitor Scalambrini Costa.

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